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Conhecimento tradicional
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Carlos José Saldanha Machado, da Fiocruz, e Rosemary de Sampaio Godinho, da UERJ, defendem que “a etnobotânica e a etnofarmacologia têm demonstrado sua eficácia prática na busca por substâncias naturais de ação terapêutica”.

A biotecnologia, ou a aplicação de todas as ciências da vida para a melhoria da saúde, continua revolucionando nossa vida cotidiana. A cada quatro anos a esperança de vida no mundo ocidental aumenta em um ano, ao mesmo tempo que é consagrado ao setor da saúde, nos países ocidentais, entre 9 e 15% do produto nacional bruto.

O processo de valorização do conhecimento técnico-científico transformou o status da biodiversidade: passou de uma questão apenas de interesse ambiental para uma questão também econômica, com a mediação da etnobotânica, da etnofarmacologia, da fitoquímica e da farmacologia. Essas disciplinas estão envolvidas nas pesquisas de novas substâncias oriundas de plantas, inventariando e sistematizando informações a partir dos conhecimentos de diferentes povos e etnias, trabalhando no isolamento, purificação e caracterização de princípios ativos e nos efeitos farmacológicos de extratos e dos constituintes químicos isolados.

Há nesse sentido, alguns caminhos demonstrados pela literatura científica especializada, para o estudo de plantas medicinais, destacando-se três tipos básicos de abordagem para a bioprospecção: randômica, quimiotaxonômica e etnodirigida. As investigações randômicas compreendem a coleta ao acaso de plantas para triagens fitoquímicas e farmacológicas. Este processo revela-se oneroso e muitas vezes infrutífero, além de poder levar anos para ser concluído.

A abordagem quimiotaxonômica ou filogenética consiste na seleção de espécies de uma família ou gênero para as quais se tenha algum conhecimento fitoquímico, de ao menos uma espécie do grupo. Um bom exemplo são as espécies do gênero Hypericum. A hipericina é um dos principais constituintes de H. perforatum L., popularmente conhecida como erva-de-são-joão, ao qual se atribuem propriedades antidepressivas. Especialistas encontraram em H. barbatum Jacq., conteúdo de hipericina 3,9 vezes maior que em H. perforatum. Entre as espécies brasileiras estudadas, estudos científicos demonstraram que em H. caprifoliatum Cham. & Schltdl. também há atividade antidepressiva. Essa abordagem, apesar de ser mais produtiva e menos onerosa, na realidade não traz reais inovações, como demonstrado acima.

Finalmente, a abordagem etnodirigida consiste na seleção de espécies de acordo com a indicação de comunidades tradicionais, em determinados contextos de uso, enfatizando a busca pelo conhecimento construído localmente a respeito de seus recursos naturais e a aplicação que fazem deles em seus sistemas de saúde e doença. Este é o caminho mais utilizado por duas razões básicas, como observam alguns especialistas: o tempo e o baixo custo envolvidos na coleta dessas informações.
Tanto a etnobotânica como a etnofarmacologia têm demonstrado sua eficácia prática na busca por substâncias naturais de ação terapêutica, consolidando-se como a primeira etapa do processo de bioprospecção. As empresas de pesquisa na área de fármacos, cosméticos, bioquímica, alimentos, entre outros, ao utilizarem os conhecimentos tradicionais, encontram um atalho cognitivo para a descoberta de princípios ativos na natureza nos laboratórios que, em seguida, servirão para a fabricação de produtos industrializados.

Um exemplo nacional a ser destacado, além da Natura e de O Boticário, é o da empresa Chemyunion, fabricante de matérias primas cosméticas e excipientes farmacêuticos que abastecem fabricantes multinacionais de cosméticos como L’Oreal, Estée Lauder, Victoria’s Secret e Avon. A empresa se destaca por trabalhar com a biodiversidade brasileira e já ter obtido diversas patentes no Brasil e no exterior, além de ganhar um prêmio da Associação Brasileira de Cosmetologia pelo desenvolvimento de um produto à base do camapu (Physalis angulata L.), planta amazônica encontrada no interior do estado do Pará e na periferia de Belém, que produz efeitos parecidos como o do ácido retinóico usado para tratamentos de pele, mas sem os efeitos colaterais.

Outros produtos oriundos da biodiversidade nacional, como os óleos e polpas da andiroba, babaçu e murmuru estão presentes nas receitas dos produtos da Chemyunion. A parte de cosméticos é responsável por 20% do faturamento anual da empresa, que ultrapassa os R$ 100 milhões. O apoio dos pesquisadores de universidades permite a empresa desenvolver bioprospecção de várias partes (sementes, resinas, folhas, caule, etc.) de inúmeras espécies vegetais nativas utilizadas por comunidades tradicionais e povos indígenas, definidos pelo presidente da empresa, como “estudiosos de todas as áreas que oferecem um trabalho inestimável”.

É evidente a comprovação do potencial dos conhecimentos tradicionais para usos terapêuticos e medicinais, o qual tem sido considerado pelo mercado como uma possibilidade maior de exploração comercial e de obtenção de benefícios. O mercado de fármacos a base de plantas, por exemplo, fonte especialmente importante para a medicina, tem crescido cerca de 5% a 15% anualmente, segundo dados de especialistas. Os custos dos processos de pesquisa e desenvolvimento de fármacos derivados de plantas e da biodiversidade em geral, conforme demonstra a literatura científica especializada, são reduzidos em até 25% quando são utilizados os conhecimentos tradicionais associados a ele. Estes fármacos produzem bilhões de dólares quando chegam ao mercado, por isso, deve ser aplicado o princípio da equidade, e os detentores desse componente intangível da biodiversidade devem receber sua justa compensação.

Consideramos que o objetivo de precisar o valor da contribuição intelectual tradicional em termos de valor econômico é uma tarefa difícil diante da diversidade humana envolvida, mas não impossível porque já estão disponíveis as técnicas econômicas de valoração de bens e serviços ambientais. O uso dessas ferramentas em estudos de economia ambiental tem se mostrado promissor. Se considerarmos que os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade podem influenciar nos processos iniciais de investigação e desenvolvimento, em ao menos uma porcentagem destes setores, resulta inegável sua importância econômica e sua potencial contribuição em aliviar um pouco as condições de pobreza que atravessam as vidas das comunidades tradicionais.

É urgente, portanto, debater nos espaços de regulação nacional e subnacionais (Congresso Nacional e Assembleias Legislativas), o retorno ou a participação nos benefícios por parte das comunidades tradicionais, dos povos indígenas e dos quilombolas nos lucros obtidos anualmente pelas grandes indústrias que fazem uso da biodiversidade dos territórios dos biomas de suas moradas e dos seus conhecimentos associados a ela. É preciso agir de forma responsável em um mundo comum que contemple a todos em direitos e deveres.

Texto:Carlos José Saldanha Machado, pesquisador em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz/Ministério da Saúde, e Rosemary de Sampaio Godinho – doutora em Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Fonte: Jornal da Ciência