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Pesadelo de além-mar

Fernanda Rebelo, da UFBA: autora focou em imigração, saúde pública, portos e epidemias

Era 29 de julho de 1893 quando o navio vapor Carlo R. partiu de Nápoles com destino ao Rio de Janeiro com 1.300 emigrantes a bordo. Dois dias depois, ocorreu o primeiro óbito. Havia um surto de cólera a bordo e não havia espaço para isolar os doentes. Ao invés de retroceder a Nápoles, onde poderiam receber tratamento, o comandante seguiu viagem. A decisão custou a vida de 109 pessoas ao longo dos vinte dias de viagem.

Proibido de atracar no Rio de Janeiro devido à regulamentação sanitária de 1889, o vapor foi direcionado ao lazareto da Ilha Grande, onde seria desinfectado, os doentes permaneceriam em tratamento e os passageiros saudáveis ficariam em quarentena. Durante o trajeto do porto do Rio de Janeiro à Ilha Grande, 106 corpos foram lançados ao mar, e ainda havia três cadáveres a bordo, além de 16 passageiros enfermos, quando o vapor chegou ao lazareto, “exalando um cheiro fétido”, segundo o inspetor-geral de saúde dos portos.

O lazareto da Ilha Grande não estava preparado para receber tanta gente. Foi então ordenado ao comandante que fundeasse o navio a três milhas de distância da costa (cerca de cinco quilômetros). O terror do cólera era imenso, pois já assolara portos europeus, asiáticos e africanos. População, autoridades e imprensa queriam o vapor longe daqui, sem contato algum. Não tardou e chegou à Ilha Grande um telegrama do próprio vice-presidente da República, Floriano Peixoto, intimando o navio a sair de águas nacionais. Em 30 de agosto, seis dias após atracar em águas brasileiras, o Carlo R. começou seu regresso à Itália – viagem sem retorno para muitos daqueles imigrantes. Enquanto isso, por aqui ressurgia o pânico a cada cadáver que aparecia em praias como Copacabana e Itaipu.

A história do Carlo R. contrasta com a do vapor Orlennais, que 14 anos depois, em 1907, aportou no Rio de Janeiro com 800 imigrantes vindos de Marselha ou embarcados em portos espanhóis. Durante a travessia, houve dois óbitos, diagnosticados pelo médico de bordo como peste bubônica, e os corpos foram jogados ao mar. O Orlennais chegou ao porto com outros doentes, que foram encaminhados ao Hospital São Sebastião, no Caju. Estava imundo e lotado. Não era possível desinfectar no porto um vapor em tais condições.

Enviado ao lazareto da Ilha Grande, o navio foi desinfectado sem os passageiros a bordo com soluções antissépticas, sendo todos os compartimentos e as roupas da equipagem fumigados. O Orleannais então voltou ao porto do Rio de Janeiro, entrando em livre prática para desembarcar alguns passageiros e carga. No Rio de Janeiro saltariam 102 imigrantes e em Santos 500, seguindo para Buenos Aires. Nenhum caso novo surgiu.

As mudanças no padrão de prevenção e combate a epidemias no porto do Rio de Janeiro nesta mudança de século são discutidas por Fernanda Rebelo, professora da Universidade Federal da Bahia, no artigo “Entre o Carlo R. e o Orleannais: a saúde pública e a profilaxia marítima no relato de dois casos de navios de imigrantes no porto do Rio de Janeiro, 1893-1907”, publicado no terceiro número de 2013 de História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 20, n.3, jun.-set.2013). Ela concedeu entrevista ao blog da revista.

Qual é a importância da sua pesquisa para a história da saúde no Brasil?

Imigração é um tema caro ao pensamento social brasileiro. Quase todos os intelectuais no começo do século XX dedicaram partes de seus trabalhos a esse tema, de Artur Ramos a Afrânio Peixoto, passando por Emílio Willems e Manuel Diégues Jr.. É praticamente impossível pensar em processo imigratório sem pensar em saúde, em especial saúde pública e combate às epidemias do começo do século XX, quando se deu a grande marcha imigratória da Europa para as Américas. Além disso, é um tema caro também aos estudos americanistas. Eu venho trabalhando, desde o meu mestrado, com História da Saúde Pública. Podemos dizer hoje que existe já uma tradição no Brasil de estudos relacionados ao processo saúde-doença das populações. Enfim, eu tinha muitas tradições para pensar esse tema, fora todos os estudos etnográficos… Mas percebia que, no campo da historiografia em especial, quando se trabalhou com imigração e saúde, os pesquisadores normalmente partiam da perspectiva das condições de saúde nas colônias e núcleos coloniais no Sul do país; do trabalho dos imigrantes e condições de saúde nas fazendas paulistas; ou os estudos demográficos, as estatísticas de entrada de imigrantes no mercado de trabalho; o fluxo e o refluxo; as relações internacionais, ou, como no campo da história oral, os relatos, as memórias; a busca por fontes de famílias, o micro etc. E eu queria pensar imigração, mais saúde pública, mais portos e epidemias na longa duração. Porque meu interesse era entender os movimentos da saúde pública em seu encontro com grande contingente populacional, estrangeiro, o gerenciamento desse encontro. Isso não era uma preocupação só minha mas de uma série de outros pesquisadores vinculados a países, em especial americanos, que tiveram que passar por esse processo por diversos motivos, desde a substituição da mão-de-obra, à configuração do mercado de trabalho, ou questões relacionadas à construção racial e/ou nacional.

Ficava muito impressionada com a sofisticação das instituições, criadas no século XIX, de recepção de imigrantes como a Ilha de Ellis, em Nova York; ou as agências de abrigo de meninas judias no porto de Buenos Aires, para que não caíssem nas redes internacionais de prostituição; ou o Lazareto da Ilha Grande no Rio de Janeiro. Por isso, acho que pode ser uma contribuição interessante para a história da saúde sim, e para a historiografia da imigração também.

Porém, mais do que isso, o meu olhar estava na relação entre a população que passava pelos portos, que passava um período de suas vidas ao redor da região portuária, esse local emblemático nas grandes cidades. Nova York, Buenos Aires e Rio de Janeiro já eram as grandes cidades das Américas no começo do século XX, por causa de seus portos. Não é à toa também que a institucionalização da saúde pública começou nos portos. Na Ilha de Ellis foi criado o primeiro laboratório de bacteriologia, para descobrir o micróbio patogênico do outro, do estrangeiro, do imigrante. Eu vejo o meu trabalho como uma contribuição à história dos encontros e desencontros, dos dramas de famílias, de pais, de filhos, de mocinhas que saíam da Europa prometidas para casamento e caíam na prostituição, de famílias de chegavam em menor número por causa dos entes que morriam por causa das epidemias durante a travessia, enfim, é essa a minha contribuição, à história social dos encontros e desencontros.

A chalupa de desinfecção funcionando junto ao vapor Manáos pouco antes da partida. Foto de Marc Ferrez (Silvado, 15 ago. 1903, p.10)

As experiências de 1893 e de 1907 foram muito diferentes, em grande parte graças ao empenho de Oswaldo Cruz à frente do Departamento de Saúde Pública. Poderia falar dos principais avanços nessa mudança de século?

Em termos de tecnologias ligada às práticas de profilaxia sanitária nos portos, sim. Em 1893 ainda existiam muitas controvérsias dentro da comunidade médico-científica em relação à aplicação da bacteriologia no diagnóstico das doenças infectocontagiosas, as doenças portuárias, febre amarela, cólera e peste bubônica. Apesar do regulamento sanitário de 1893, que teve origem na assinatura do convênio sanitário com os países platinos, que homogenizava as práticas nos portos, o tempo de aceite de uma nova teoria científica pela comunidade científica e pelos profissionais que trabalhavam na ponta da recepção de imigrantes nos portos é mais longo que os regulamentos. Mesmo que haja uma nova legislação sanitária no porto, a forma como ela é interpretada, aplicada e aceita é muito diversa em cada local, em cada porto. Em 1907, as coisas já estavam mais bem configuradas. A partir do regulamento sanitário de 1904, também fruto de convenção com países vizinhos, é essencial pensar isso junto. No mesmo ano, na Conferência Sanitária em Paris, foi aceita oficialmente pela comunidade científica a relação entre vetor mosquito e febre amarela. Claro, graças à campanha bem sucedida de Oswaldo Cruz, à frente do Departamento de Saúde Pública. Por um período extinguiu-se o vírus na cidade, na região portuária. Mas logo, em 1910, a febre amarela voltou, apesar do Bota Abaixo e do campanhismo. Então, neste segundo momento, a comunidade médica viu a necessidade de pensar as questões de saúde dentro da chave mais clássica do sanitarismo, ou seja, não bastava, como não basta, somente pensar o combate às doença de uma forma verticalizada, focada em determinada enfermidade, unicausal. O importante é pensar na melhora das condições de vida da população, diminuindo-se a pobreza, a doença também diminui. Esse é o principal e verdadeiro avanço da medicina.

As epidemias continuam assustando as pessoas. É possível traçar um paralelo entre aqueles tempos e hoje?

Acho que o único paralelo que podemos traçar entre as experiências do passado e as do presente com relação às epidemias é a nossa sensação de impotência, medo e fragilidade diante delas.

Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:

Entre o Carlo R. e o Orleannais: a saúde pública e a profilaxia marítima no relato de dois casos de navios de imigrantes no porto do Rio de Janeiro, 1893-1907 – artigo de Fernanda Rebelo

Veja o sumário da edição (vol.20 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2013)

Como citar este post:

Entrevista com Fernanda Rebelo. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 24 October 2013]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/pesadelo-de-alem-mar/

Como citar o artigo:

REBELO, Fernanda. Entre o Carlo R. e o Orleannais: a saúde pública e a profilaxia marítima no relato de dois casos de navios de imigrantes no porto do Rio de Janeiro, 1893-1907. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2013, vol.20, n.3 [citado 2013-10-31], pp. 765-796 . Disponível em: . ISSN 0104-5970. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-597020130003000003.

(Marina Lemle / Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos)